15 Julho 2023
"Bolsonaro fortaleceu os partidos conservadores com a militarização de órgãos governamentais e o discurso de ódio", escrevem Rodrigo Machado Vilani, Lucas Ferrante e Philip M. Fearnside, em artigo publicado por Amazônia Real, 12-07-2023.
Rodrigo Machado Vilani possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2000) e em Direito pela Faculdade Vianna Júnior (2003). Possui mestrado em Direito (2006) e doutorado em Meio Ambiente (2010) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Realizou pós-doutorado no Programa de Biodiversidade e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (2014). É professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde ingressou em 2014. Suas áreas de interesse são: Direito Ambiental; Política Ambiental; Áreas protegidas; Conflitos Ambientais; Ecoturismo.
Lucas Ferrante é doutor em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e atualmente é pós-doutorando na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 750 publicações científicas e mais de 700 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.
O primeiro texto da série se encontra disponível aqui.
O legado do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) é um obstáculo formidável para Lula em diversas áreas. Sob Bolsonaro o desmatamento e a mineração ilegais na Amazônia foram estimulados tanto pela retórica de Bolsonaro quanto por seus muitos decretos antiambientais. O governo federal do Brasil tolerou e até incentivou atividades ilegais, que atingiram níveis recordes [1-6].
Quando Bolsonaro se tornou presidente em janeiro de 2019, lançou uma agenda promovendo ativamente a retórica da ocupação de “espaços improdutivos” [7], e seus apoiadores querem que isso continue. Essa agenda, que é composta por um conjunto de leis, decretos e esvaziamento de órgãos de fiscalização, é conhecida como “agenda da morte” devido ao seu impacto no meio ambiente e nos povos tradicionais do Brasil [1].
Bolsonaro fortaleceu os partidos conservadores com a militarização de órgãos governamentais e o discurso de ódio [1, 2, 8], e tentou em mais de uma ocasião organizar um golpe para perpetuar seu tempo no poder [8]. Durante o governo Bolsonaro, o número de “células” neonazistas brasileiras na internet explodiu para um total de mais de 1000, e a escala da ameaça chamou a atenção do público quando uma manifestação em apoio a Bolsonaro com saudações nazistas foi realizada no estado de Santa Catarina [9] (Figura 1). Embora a maioria dos que votaram em Bolsonaro nas eleições de 2022 não sejam membros de grupos violentos, esses grupos podem causar danos significativos. Na região amazônica, as ações desses grupos foram facilitadas pelo desmantelamento de agências ambientais e indigenistas por Bolsonaro, levando à violência contra povos indígenas e ambientalistas [8, 10-12].
Bolsonaro defendeu consistentemente a retirada de direitos dos povos indígenas durante os mais de 20 anos em que foi deputado federal de bancada na câmara baixa do Congresso Nacional brasileiro [1]. Em um discurso ao congresso em 16 de abril de 1998, Bolsonaro disse o seguinte:
“Vale até uma observação neste ponto: a Cavalaria brasileira foi realmente muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que no passado dizimou seus índios e hoje esse problema não existe em seu país”. ([13], p. 9.957).
Durante sua presidência, Bolsonaro incentivou a mineração ilegal por meio de seu discurso e ele e seus principais funcionários realizaram vários encontros amistosos com empresários mineradores que organizavam essas atividades, inclusive no território do povo Yanomami (por exemplo, [14, 15]). Isso resultou em mais de 20.000 garimpeiros invadindo a terra indígena Yanomami [4]. Bolsonaro deixou claro seu apoio ao garimpo ilegal em terras indígenas e inibiu os órgãos ambientais do Brasil de agir para remover garimpeiros ilegais quando ordenou pessoalmente a demissão de funcionários do IBAMA que cumpriam seu dever de destruir equipamentos de mineração em terras indígenas [2].
As violações dos direitos humanos dos povos tradicionais no Brasil aumentaram enormemente durante a pandemia da COVID-19 como resultado de ações do governo Bolsonaro, incluindo invasões de terras indígenas [2], expropriações e expulsão de povos tradicionais de suas terras [16], falta de consulta aos povos indígenas sobre grandes empreendimentos planejados que os impactam [3, 17] e até mesmo bloqueio de agências governamentais de fornecer água potável e leitos hospitalares para comunidades indígenas durante o auge da a pandemia de COVID-19 [18].
As ações do governo Bolsonaro resultaram em um legado de vulnerabilidade para as comunidades tradicionais da Amazônia, especialmente os povos indígenas que são grupo de risco para a COVID-19 [19], e a mortalidade pela COVID-19 é muito maior entre os indígenas do que os não indígenas. Uma grande contribuição para essa mortalidade foi um dos legados deixados pelo governo Bolsonaro [20], e a perda de um ancião para a COVID-19 pode representar a perda de toda uma cultura porque as tradições indígenas são transmitidas oralmente pelos mais velhos [21]. As terras indígenas têm um papel além da proteção dos povos tradicionais, sendo também fundamentais para a proteção da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos na Amazônia [22].
Durante o governo Bolsonaro, pelo menos 570 crianças Yanomami morreram de causas evitáveis [23]. Em janeiro de 2023, o Ministério da Saúde do governo Lula declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional para o território Yanomami em resposta à condição de “crianças e idosos em estado grave de saúde, com desnutrição grave, além de muitos casos de malária, infecção respiratória aguda” [24]. Devido à gravidade da situação, o Decreto nº 11.384, de 20 de janeiro de 2023, criou o Comitê de Coordenação Nacional de Enfrentamento à Falta de Assistência Sanitária às Populações do Território Yanomami. O Comitê Interministerial vai traçar um plano de ação para enfrentar a falta de atenção à saúde das populações do território Yanomami e os problemas sociais e de saúde decorrentes.
O presidente Lula visitou o território Yanomami em 21 de janeiro de 2023 e confirmou que o povo Yanomami estava em “estado de abandono”. Ele demitiu 11 coordenadores distritais de saúde indígena do Ministério da Saúde e 43 funcionários da FUNAI, incluindo 13 militares [25].
O governo Bolsonaro não cumpriu os dispositivos constitucionais do Brasil que garantem: (i) a dignidade da pessoa humana (art. 1, III), (ii) o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225) e (iii) direitos (art. 231). O governo Bolsonaro ignorou seis objetivos estabelecidos na constituição: ( i ) preservar e assegurar os processos ecológicos essenciais (art. 225, §1º, I); (ii) preservar a diversidade e integridade do patrimônio genético nacional (art. 225, §1º, II); (iii) proteger a fauna e a flora e sua função ecológica (art. 225, §1º, VII); (iv) impedir a extinção de espécies (art. 225, §1º, VII); (v) abrigar, defender e valorizar o patrimônio cultural brasileiro, como os sítios de valor histórico, paisagístico, ecológico e científico (art. 216, V), e (vi) proteger a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e tradições, e os direitos originários dos povos indígenas (art. 231).[26]
[1] Ferrante L, Fearnside PM (2019) Brazil’s new president and ‘ruralists’ threaten Amazonia’s environment, traditional peoples and the global climate. Environmental Conservation 46: 261-263.
[2] Ferrante L, Fearnside PM (2020) Brazil threatens indigenous lands. Science 368: 481-482.
[3] Ferrante L, Fearnside PM (2020) Amazon’s road to deforestation. Science 369: 634.
[4] Ferrante, L, Fearnside, PM (2022a) Mining and Brazil’s indigenous peoples. Science 375: 276.
[5] Deutsch S (2021) Populist authoritarian neoliberalism in Brazil: Making sense of Bolsonaro’s anti-environment agenda. Journal of Political Ecology 28: 823-845.
[6] Vilani RM, Ferrante L, Fearnside PM (2022) Amazonia threatened by Brazilian President Bolsonaro’s mining agenda. Die Erde 153: 254-258.
[7] Milhorance C (2022) Policy dismantling and democratic regression in Brazil under Bolsonaro: Coalition politics, ideas, and underlying discourses. Review of Policy Research 39: 752–770.
[8] Ferrante L, Fearnside PM (2021) Brazilian government violates Indigenous rights: What could induce a change? Die Erde 152: 200-211.
[9] Bechara V (2022) Casos de inspiração neonazista no Brasil entram na mira das autoridades. Veja 30 de novembro de 2022.
[10] Barbosa LG, Alves MAS, Grelle CEV (2021) Actions against sustainability: Dismantling of the environmental policies in Brazil. Land Use Policy 104: art. 105384.
[11] Sauer S, Leite AZ, Tubino NLG (2020) Agenda política da terra no governo Bolsonaro. Revista da ANPEGE 16: 285-318.
[12] Wanderley LJ, Gonçalves RJA, Milanez B (2020) O interesse é no minério: O neoextrativismo ultraliberal marginal e a ameaça de expansão da fronteira mineral pelo governo Bolsonaro. Revista da ANPEGE 16: 549-593.
[13] DCD (Diário da Câmara dos Deputados) (1998) Quinta-feira, 16 de abril de 1998, p. 09957.
[14] Gabriel J (2023) Governo Bolsonaro deu aval inédito para garimpo próximo à terra Yanomami. Folha de São Paulo 23 de janeiro de 2023.
[15] Sassine V (2023) Inquérito de genocídio dos yanomamis apura conduta de garimpeiros, saúde indígena e políticos. Folha de S. Paulo 25 de janeiro de 2023.
[16] Coelho-Junior MG, Iwama AY, González TS, Silva-Neto EC, Araos F, Carolino K, Campolina D et al. (2020) Brazil’s policies threaten communities and their lands amid the COVID-19 pandemic. Ecosystems and People 16: 384-386.
[17] Ferrante L, Gomes M, Fearnside PM (2020) Amazonian indigenous peoples are threatened by Brazil’s Highway BR-319. Land Use Policy 94: art. 104548.
[18] Ferrante L, Duczmal L, Steinmetz WA, Almeida ACL, Leão J, Vassão RC, Tupinambás, U et al. (2021) How Brazil’s President turned the country into a global epicenter of COVID-19. Journal of Public Health Policy 42: 439–451.
[19] Ferrante L, Fearnside PM (2020c) Protect indigenous peoples from COVID-19. Science 368: 251
[20] Sansone NM, Boschiero SMN, Ortega MM, Ribeiro IA, Peixoto AO, Mendes RT, Marson FAL (2022) Severe acute respiratory syndrome by SARS-CoV 2 infection or other etiologic agents among Brazilian indigenous population: An observational study from the first year of coronavirus disease (COVID)-19 Pandemic. Lancet Regional Health – Americas 28: art. 100177.
[21] Ferrante L, Steinmetz WA, Almeida ACL, Leão J, Vassão RC, Tupinambás U, Fearnside PM et al. (2020) Brazil’s policies condemn Amazonia to a second wave of COVID-19. Nature Medicine 26: 1315.
[22] Ferrante L, Fearnside PM (2022) Indigenous lands protect Brazil’s agribusiness. Science, 376: 810.
[23] Crescer, Agência Brasil (2023) 570 crianças da etnia Yanomami morreram por causas evitáveis nos últimos 4 anos, aponta levantamento.
[24] Ministério da Saúde (2023) Ministério da Saúde declara emergência em saúde pública em território Yanomami.
[25] UOL (2023) Governo Lula dispensa 43 servidores na Funai; ao menos 13 são militares. UOL 24 de janeiro de 2023.
[26] Esta série é uma tradução de Vilani RM, Ferrante L, Fearnside PM. (2023) The first acts of Brazil’s new president: Lula’s new Amazon institutionality. Environmental Conservation.
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Os primeiros atos de Lula: 2 – O legado de Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU